Crer pensando e pensar crendo (crerpensando.tumblr.com)

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Mas o que eu quero ser quando cansar de crescer? / But what do I want to be when I get tired of growing up?

Engraxate. Lustrando sapatos alheios que pisam nos meus calos. Sempre com uma graxa impecavelmente preta, tirada do fundo do poço, um petróleo raro e sem valor chamado escassez de orgulho. Queixo desabado, narinas que respiram o suor e as meias podres daqueles que viveram antes e viverão melhor depois de mim. Em troca de um trocado de consideração. Já fui engraxate por muitas vezes na vida. Também já tive meus dias de biólogo. Conhecer vários corpos, estudar vários ares, desvendar os mistérios daqueles outros humanos tão meio bichos que tão pouco a humanidade precisava. Uma arara em extinção não era mais saborosa de fotografar com olhos saudosos do que um sorriso espontâneo, uma boa vontade, um abraço confortável, uma caridade que não fosse de pão velho e culpa. Estudar a vida dos outros dava pouco dinheiro. Virei político, presidente da República de mal amados. Belos discursos, novos recomeços, amanhãs ensaiados com pura maestria, terno e gravata de pompa e por dentro, um saco de mentiras que só não mal cheirava por causa das boas aparências e da pele intransponível que todos julgavam impecavelmente limpa. Mas só a cara era lavada. A mão assinava contratos fantasmas com a minha própria comunidade. Eu prometo ser sempre feliz. Eu prometo aprender a engolir fantasmas, porque com sal, pimenta, noz moscada e um pouco de boa vontade qualquer medo é tragável. Eu prometo procriar e envelhecer, virar adubo de terra e jamais me render a corrupção. Abandonei os smokings depois das primeiras descobertas de fraude, quando meu nome nunca acabou em nenhuma mídia por tentativa de mudar o mundo. Já tentei ser coisa de criança, quem sabe algum tipo de bombeiro ou policial, mas os meus herois morreram de overdose de matemática, física, química, enrolação. Salvar a vida de alguns miseráveis não me parecia atraente. Tudo seria mais lógico num mundo exato. Longe de promessas, animais e graxas. Longe da vida. Tudo seria mais metricamente perfeito num mundo de raízes quadradas. Vivendo num planeta anaeróbio, onde números e números completariam o espaço entre quatro dígitos de nascimento e os mais esperados dígitos da morte. Tudo é contável e virei o contador da minha própria história. Matemático. Contava as lágrimas na hora da insônia, cumpria meus exercícios intelectuais, jamais me distraí com essas bobagens de sofrimento. Fui feliz ao quadrado, até o dia em que resolvi que o mundo precisava de mim, precisava descobrir a chave da sabedoria numérica. Mas o mundo já tem número demais e um zero a esquerda é só um zero a esquerda. Decepcionado, quis ser professor. Ensinei a mim mesmo com quantas pizzas se faz um domingo de solidão, com quantos meses de gestação minha alma desgraçada entrou no corpo de um bebê que tudo tinha para ser promissor. Ensinei tudo a mim, mas ser aprendiz e mestre dá chance aos erros. Novos rumos, novos anos, novas profissões. Aprender a ignorar. Alcoólatra, bailarino, equilibrista, tudo ao mesmo tempo. Um artista circense dramático como um palhaço, metendo medo em olhares pequenos que ainda tem o mínimo de fé na vida. Um pintor capaz de reproduzir o som do silêncio, em mais profunda ausência de tinta. Um violinista encantador de serpentes cujo veneno eu aproveitava nas sopas diárias de melancolia e autopiedade. Dramaturgo, formado na Academia Brasileira de Artes Inúteis, salvando Julieta para ver morrer Romeu. Egoísmo pelo amor vindouro dos outros. Um contador de absurdos, um lunático, um sociólogo descrente, um mentiroso. Alguém sem experiência, contratado para bicos que não emendam uma torneira de casa. Ninguém se importa com um funcionário atrasado para a própria vida, porque há outros que querem a vaga de permanecer vivendo. Vivendo a minha vida. Mas eu não abro mão das humilhações, de ter que implorar por um crachá que diga que eu sou eu, que trabalho entalhando a minha cara, como um marceneiro de arte abstrata quase incompreensível. Ora brilhante, ora amontoado de carne, ossos e velharia. Eu não abro mão de bater de porta em porta, procurando resquícios de férias e décimo terceiro. Funcionário público de um coração privado. Engraxate, advogado, professor, matemático, filósofo, geólogo, decorador de ambientes, empresário, político, médico, enfermeiro, psicólogo. Cresci sendo. Mas o que eu quero ser quando cansar de crescer?

nothingmorematter.tumblr.com


_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x_x

Bootblack. I have been shining people's shoes, which step on my calluses. I have always an impeccably black grease, which is taken from the bottom of the well, a rare and worthless oil called scarcity of pride. My chin is collapsed, nostrils that breathe the sweat and rotten socks of those who lived good before me and will live better after me. In exchange for a little bit of consideration. I've been a bootblack for many times in my life. I've also had my biologist days. I used to know several bodies, to study various airs, to unravel the mysteries of those other humans like half-animals that need just a little of humanity. An endangered macaw was no longer fond of taking photos with longing eyes than a spontaneous smile, a good will, a comfortable hug, a charity that was not of old bread and guilt. Studying others' lives is a job that earns little money. I became a politician, an ill-loved's President of the Republic. Beautiful speeches, new beginnings, tomorrows rehearsed with pure mastery, suit and tie of pomp and deep inside, a sack of lies that just did not smell bad because of the good appearances and insurmountable skin that everyone thought impeccably clean. But, only the face was washed. My hand signed false contracts with my own community. I promise to always be happy. I promise to learn to eat ghosts, because with salt, pepper, nutmeg and a little goodwill any fear is swallowing. I promise to procreate and age, to become earth manure, and never to surrender to corruption. I abandoned the tuxedos after the first discoveries of fraud, when my name never ended up in any media for attempting to change the world. I've tried to be a kid thing, maybe some kind of firefighter or a police officer, but my heroes died of overdose of math, physics, chemistry, coil. Saving some miserable lives did not seem attractive to me. Everything would be more logical in an exact world. Far from promises, animals and grease. Far from life. Everything would be more metrically perfect in a world of square roots. Living on an anaerobic planet, where numbers and numbers would complete the space between four digits of birth and the most anticipated digits of death. Everything is countable and I will become the accountant of my own story. Mathematical. I counted the tears at the time of insomnia, I fulfilled my intellectual exercises, I never distracted myself with these nonsense of suffering. I was happy in the square, until the day I decided the world needed me, I needed to find the key to numerical wisdom. But, the world already has too many numbers and a zero to the left is only a zero to the left. Disappointed, I wanted to be a teacher. I taught myself how many pizzas could be made on a Sunday of solitude, or how many months of gestation my wretched soul entered the body of a baby who had everything to be promising. I have taught everything to myself, but being an apprentice and a teacher there is a chance to mistakes. New directions, new years, new professions. Learning to ignore. Alcoholic, dancer, tightrope, all at the same time. A dramatic circus, performing as a clown, throwing fear into small looks that still have the least faith in life. A painter capable of reproducing the sound of silence, in the deepest absence of ink. A charming snake violinist whose poison I used in daily soups of melancholy and self-pity. Playwright, graduated from the Brazilian Academy of Unuseful Arts, saving Juliet to see Romeo die. Selfishness, for the coming love of others. An absurd counter, a lunatic, an unbelieving sociologist, a liar. Someone with no experience, hired for nozzles that do not smear a house faucet. No one cares for a late official for his own life, because there are others who want the job of staying alive. Living my life. But, I will not let go of the humiliations, of begging for a badge that says I am me, who works carving my face, like an almost incomprehensible carpenter of abstract art. Bright, now crowded with flesh, bones and old age. I do not give up hitting door to door, looking for holiday remnants and thirteenth budget. Public servant of a private heart. Shoemaker, lawyer, teacher, mathematician, philosopher, geologist, decorator, businessman, politician, doctor, nurse, psychologist. I grew up being those things. But what do I want to be when I get tired of growing up?

Nenhum comentário:

Postar um comentário